Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
* Bacana essa visão da criança, não acham???!!!
Fonte: Digitado e conferido por mim mesmo (Manoel de Barros) em 12 de outubro de 2012 no livro Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 187
Posted by Bah on 20 de novembro de 2013 at 10:11
Lindo e deprê pra mim pq meu aniversário está chegando e estou começando a lembrar da minha infância que foi há anos atrás uahauaha (inferno astral, me perdoe rs)
Kisu!
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 20 de novembro de 2013 at 11:58
Bah, minha querida. Você é uma eterna criança e tem que continuar assim. Adoramos você.
Kisu com carinho!
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Posted by Vânia on 18 de novembro de 2013 at 8:45
Que texto lindo Manoel! Me fez relembrar a minha infância, não exatamente os mesmos episódios, mas boas lembranças. Parabéns!
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 18 de novembro de 2013 at 21:27
Vânia, que bom que te passou boas lembranças. São reflexões bem gostosas mesmo.
Um beijo
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Posted by Dulce Morais on 18 de novembro de 2013 at 5:31
“Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.”
Parece um sonho de tão belo!
Muito obrigada pela viagem, Manoel (ambos!!!)
🙂
Abraço!
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 18 de novembro de 2013 at 12:20
Dulce, parece bobagem, mas fiquei muito feliz com o (ambos!!!), kkk!
Um abraço grande
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Posted by rikaferreira on 17 de novembro de 2013 at 14:18
Muito bem escrito, que infância saudável, que imaginação, é a capacidade inocente da criança de tudo ser uma viagem, de dar vida a tudo em volta.
É bom voltar lá atrás e lembrar a essência.
Como disse a Áurea Cristina, ele expressou tão bem o universo dele pequeno que redesperta a nossa criança interior, automaticamente me lembrei de mim. Realmente… Me lembrei do que eu sou de verdade, antes de “crescer” e virar outra coisa, se é que dá para entender.
Abraço.
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 17 de novembro de 2013 at 14:25
Rika, que coisa boa ter surtido um efeito positivo em você essa postagem. Deu para entender perfeitamente as suas lembranças. Que bom, não é?
Abraço
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Posted by Christine Marote on 17 de novembro de 2013 at 5:54
Lindo texto… parabéns! =]
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 17 de novembro de 2013 at 11:59
Christine, o Manoel de Barros é muito competente na sua sensibilidade.
Um beijo
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Posted by Cris Campos on 16 de novembro de 2013 at 19:50
Adoro ler Manoel! Seu jeito simples e despojado de falar das coisas, e essa arte fantástica do neologismo, ah ele é maravilhoso! Só não sei se devemos considerar ou desconsiderar aquela sua famosa confissão… mas na verdade acho que não importa se é invenção ou mentira, o que importa é que ele “toca o coração das pessoas” Ana tinha razão. Gr. Bj. Manô!
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 16 de novembro de 2013 at 20:00
Cris, ele não escreve. Ela passeia na escrita.
Beijo grande
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Posted by Aurea Cristina Szczpanski on 16 de novembro de 2013 at 18:25
Muito bom! Inspirador… deu vontade de buscar essa linguagem infantil cá dentro… e rever minhas estórias. Como diz Manoel de Barros, há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas..
Abraço!
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 16 de novembro de 2013 at 19:57
Áurea Cristina, a simplicidade da escrita dele é demais. Por exemplo esse dizer que as histórias são tão verdadeiras que parecem inventadas, kkk! Muito bom, não é?
Abraço!
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Posted by Marcilane on 16 de novembro de 2013 at 17:51
Oww que lindo texto!! Reflete muito o que eu fui quando criança, principalmente esse trechinho do início “Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância.” Fui uma criança solitária, brinquei mais sozinha do que acompanhada com outras crianças, conversava comigo mesma, criava minhas próprias histórias e fantasias. E hoje me pergunto: Por que não foi diferente? Por que não fui mais aventureira e aproveitei mais minha infância? Mas por outro lado, talvez tudo isso tenha servido para me ensinar algo.
No mais, Manoel de Barros para mim é um grande mestre e com seus escritos, nos passa muitos ensinamentos.
Abraços para o meu amigo Manoel Fernandes! Saudades 🙂
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 16 de novembro de 2013 at 18:16
Marcilane, você é sempre aquele amorzinho de pessoa. Gostoso ter você por aqui ^^.
Eu achei legal esse depoimento do Manoel de Barros, mas na minha opinião a gente quando criança faz o que mais gosta. Uns são mais solitários e quietos e outros são super-sapecas e um terror. Eu acho que é uma fase tão boa da vida que vale tudo e tudo é muito lindo.
Adorei a minha amiga de cabecinha boa por aqui.
Um beijo muito especial
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Posted by A menina cos(z)e? on 16 de novembro de 2013 at 15:28
Muito bonita esta visão da criança no ser adulto. 🙂 Beijo
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Posted by Blog do Óbvio - Manoel on 16 de novembro de 2013 at 16:52
Joana, é interessante essa análise, não é mesmo?
🙂
Beijo
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